O NURC Brasil: origens

Desde o século XIX, a questão da norma brasileira da língua portuguesa é assunto de discussões, polêmicas e controvérsias. Lembremos, somente para ilustrar, da polêmica que José de Alencar (1870) travou com Pinheiro Chagas, em texto pós-escrito ao romance Iracema. Depois, outros tantos autores e uma discussão que nunca acabou... Os linguistas, já na segunda metade do século XX, resolveram começar a refletir sobre tal problema. No livro A linguagem falada culta na cidade de São Paulo, materiais para seu estudo, organizado por Preti e Castilho (1986), lê-se uma parte da história que começou a mudar o rumo dos estudos sobre a linguagem falada no Brasil e, consequentemente, da compreensão sobre o português do Brasil.

O texto a seguir constitui a introdução do livro citado e é de autoria de Castilho (1986, p. 4-10), aqui adaptado para atender às necessidades desta informação .

1.  Por ocasião do I Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea (Coimbra, 1967), debateu-se o problema da descrição do português contemporâneo como língua padrão no Brasil e em Portugal. Aryon Dall'lgna Rodrigues afirmou que o assunto era tratado impressionisticamente, faltando estudos que avaliassem até que ponto o português do Rio de Janeiro constituía de fato um padrão aceito no país. Ele frisou o caráter arbitrário das normas gramaticais ('comumente, disse, o mesmo professor que ensina essa gramática não consegue observá-la em sua própria fala, nem mesmo na comunicação dentro de seu grupo profissional') e concluiu pela inexistência de um padrão falado de caráter geral, devendo existir diversos padrões regionais dessa espécie. Uma vez escolhido o método de descrição, aconselhou a que se principiassem as investigações nas capitais dos Estados, usando-se um só documentador, que faria as gravações durante um período contínuo. Esse material seria então descrito pelos linguistas, cabendo aos gramáticos a identificação da norma pedagógica: Rodrigues (1968). Na mesma ocasião, Brian Head propôs a determinação do 'sistema comum às principais variedades cultas': Head (1968).

2. Coube a Juan M. Lope Blanch, professor do "Colégio de México'', transformar esse elenco de aspirações numa proposta clara e concreta. Ele apresentou-a em 1964 à Comissão de Linguística e Dialetologia Ibero-americana do "Programa Interamericano de Linguística e Ensino de Idiomas" (PILEI), por ocasião do II Simpósio da entidade, realizado em Bloomington, Estados Unidos. A proposta foi intitulada "Proyecto de Estudo del Habla Culta de las Principales Ciudades de Hispa­noamérica": Lope Blanch (1967). Ele conseguiu despertar o interesse de grande número de linguistas hispanoamericanos, tendo aderido ao trabalho representantes das cidades de Montevideo, Buenos Aires, Santiago do Chile, Bogotá, Lima, Caracas, Havana, México, San Juan de Puerto Rico e Madrid. Diversas reuniões preparatórias e de acompanhamento foram realizadas em Madrid (1966), Bogotá (1967), São Paulo (1969},

San Juan de Puerto Rico (1971), Lima (1975), Caracas (1978), Phoenix (1981) e Santo Domingo (1984). Relatos e indicações bibliográficas sobre o projeto na área espanhola aparecem nas Atas dos Simpósios do PILEI, nas Atas dos Congressos internacionais da Associação de Linguística e Filologia da América Latina (ALFAL), e nos boletins informativos editados por essas associações.

O 'Proyecto' consiste na gravação de exemplares da fala urbana, cujos aspectos fonéticos e fonológicos, gramaticais e léxicos seriam descritos por equipes de pesquisadores especialmente treinados. O trabalho teria os seguintes passos:

(1) Constituição, em cada cidade, de um arquivo sonoro de 400 horas de gravações, recolhendo-se a fala de 600 informantes de formação  universitária,  nascidos na cidade sob estudo, filhos de falantes nativos do espanhol, e divididos em três faixas etárias: de 25 a 35 anos (30%), de 36 a 55 anos (45%) e de mais de 56 anos (25%). As gravações compreenderiam quatro tipos de entrevistas: gravação secreta de um diálogo espontâneo (10% das 600 horas), diálogo entre dois informantes (40%), diálogo entre um informante e o documentador (40%) e elocução em atitude formal (10%). Os assuntos a versar constam de um Guia-Questionário especialmente elaborado para esse fim, composto de milhares de quesitos que compreenderiam os seguintes centros de interesse: o corpo humano, a alimentação, o vestuário, a casa, a família, a vida social, a cidade, transportes e viagens, meios de comunicação e difusão, cinema, televisão, rádio, teatro, comércio exterior e política nacional, sindicatos e cooperativas, profissões e ofícios, dinheiro e finanças, instituições (o ensino, a igreja), meteorologia, o tempo cronológico, a terra, os vegetais e a agricultura, animais.

(2) Transcrição das fitas e eventual publicação de amostras. Foram publicadas até aqui amostras das seguintes cidades: México (1971), Caracas (1979), Santiago (1982) e Madrid (1983).

(3) Análise detalhada do corpus, para permitir um conhecimento rigoroso da fala atual das grandes metrópoles de língua espanhola, nas quais se reúnem muitas vezes a terça ou a quarta parte da população nacional. Para permitir a comparabilidade dos dados, organizou-se um guia-questionário que serviria de procedimento analítico comum. O questionário tem o seguinte plano geral:

 

1. Fonética e Fonologia
1.1 - Vogais
1.2 - Consoantes
1.3 - Supra-segmentos

2. Morfo-Sintaxe
2.1 - Classes de palavras:
1. Substantivo
2. Adjetivo
3. Artigo
4. Pronome e Numeral
5. Verbo

6. Advérbio
7. Nexos
2.2 - Frases:
1. Frase Nominal

2. Frase Verbal
2.3 - Oração e Periodo
2.4 - Estruturas Coloquiais

3. Léxico

 

Os itens 2.2-4 não foram completados. O "Guia-Questionário" foi publicado na Espanha: Questionário (1971, 1973). Diversos estudos parcelares ou mais amplos têm sido publicados sob a forma de livros ou de artigos em revistas especializadas, reunidos em coletâneas: Lope Blanch, org. (1977). O México publicou um volume sobre o Léxico: Lope Blanch, org. (1978).

3. Desde os primeiros momentos de concepção do "Proyecto", esteve presente entre os participantes a ideia de que o mundo de língua portuguesa deveria integrar-se nele. Para estudar essa possibilidade, foi convidado o Prof. Nelson Rossi, da Universi­dade Federal da Bahia, que apresentou ao IV Simpósio do PILEI um relatório a esse respeito. Nesse texto, o Prof. Rossi pondera que o estudo tão somente da linguagem do Rio de Janeiro não daria uma imagem completa do português culto do Brasil, e expõe suas idéias a respeito do policentrismo cultural brasileiro. Em consequência, propôs a realização do projeto em cinco cidades brasileiras com um minimo de um milhão de habitantes e sufi­ciente estratificação social para atender às exigências do projeto original, a saber, Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Ja­neiro e Porto Alegre: Rossi (1969).

Aprovado seu relatório, o Prof. Nelson Rossi foi encarregado pelo PILEI de indicar os coordenadores do trabalho em cada cidade, os quais foram formalmente designados no V Simpósio (São Paulo, 1969): Recife, Prof. José Brasileiro Vilanova, da Universidade Federal de Pernambuco; Salvador, Prof. Nelson Rossi, da Universidade Federal da Bahia; Rio de Janeiro, Prof. Celso F. da Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro; São Paulo, Profs. Isaac Nicolau Salum, da Universidade de São Paulo, e Ataliba T. de Castilho, da Faculdade de Filosofia, Ciên­cias e Letras de Marília; Porto Alegre, Prof. Albino de Bem Veiga, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Os Coordenadores organizaram as equipes de trabalho em suas cidades e, para manter um ritmo coordenado de trabalhos, passaram a realizar reuniões com certa frequência: I, Porto Alegre, 1969; II, Capivari, 1970; III, Recife, 1971; IV, Rio de Janeiro, 1971; V, Salvador, 1972; VI, Porto Alegre, 1973; VII, São Paulo, 1974; VIII, Recife, 1974; IX, Rio de Janeiro, 1975; X, Rio de Janeiro, 1977; XI, Salvador, 1981; XII, Rio de Janeiro, 1984; XIII, Cam­pinas, 1985. As atas de algumas dessas reuniões foram publicadas pela revista Alfa,· uma coletânea de textos sobre a insta­lação do Projeto na área do espanhol e na do português foi publicada pelo Conselho Municipal de Cultura de Marília; diversos artigos de divulgação do Projeto foram publicados no país: Alfa (1969, 1977), Bem Veiga (1973, 1975), Castilho, org. (1969a, 1969b,  1972, 1973), Cunha  (1970), Preti (1981, 1985), Rossi (1972, 1978), Salum (1971), Silva, Silva e Rossi (1973).

A Comissão brasileira tomou, entre outras, as seguintes de­cisões: estabeleceu um modelo de ficha de informantes, publicada, [no menu Publicações, Fase I, deste site]; excluiu as gravações  secretas; adaptou para o português o Guia-Questionário; decidiu realizar a análise dos dados em caráter experimental. Naquele momento, esta era a situação das cidades participantes com respeito à constituição do arquivo sonoro: Recife, 363 entrevistas com 461 informan­tes, 307 horas e 20 minutos de gravações; Salvador, 357 entre­vistas com 456 informantes, 304 horas de gravações; Rio de Janeiro, 394 entrevistas com 493 informantes, 328 horas e 40 minutos de gravações; São Paulo, 381 entrevistas com 474 informantes, 316 horas de gravações; Porto Alegre, 375 entrevistas com 472 informantes, 314 horas e 40 minutos de gravações. O total geral mostra que 2.356 informantes foram ouvidos em 1.870 entre­vistas, recolhendo-se 1.570 horas e 40 minutos de gravações, o que configurava a mais ampla documentação da língua portuguesa culta falada no país.

4. Concentraremos agora este informe na situação do Projeto na cidade de São Paulo, a maior cidade de língua portuguesa do mundo. Destacaremos, inicialmente, a importância do suporte financeiro que a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) tem dado ao Projeto NURC/SP desde o começo dos trabalhos, sob a forma de auxílios à pesquisa, passagens e bolsas de estudos para pesquisadores. É de justiça lembrar o nome dos Diretores Científicos da Fundação, que sempre entenderam as peculiaridades de um projeto como este: Profs. Drs. Oscar Sala, William Saad Hossne, Ruy C. Camargo Vieira e Flávio Fava de Moraes. Outros auxílios foram prestados pela Prefeitura de Marília, pela Universidade de São Paulo, pela Secretaria de Cul­tura do Ministério de Educação e Cultura, pela Universidade Estadual de Campinas e pela IBM do Brasil. Em São Paulo, o Projeto NURC tem sido coordenado pelos Profs. Isaac Nicolau Salum e Ataliba T. de Castilho. O primeiro, tendo-se aposentado em 1983, foi substituído a seu pedido pelo Prof. Dino Preti, da mesma Universidade. O segundo, tendo-se transferido em 1975 para a Universidade Estadual de Campinas, agregou esta Universidade ao Projeto, tendo-se duplicado os arquivos nas duas instituições. Por decisão dos Coordenadores, aprovada pela Comissão Nacional na reunião de 1977, os mate­riais do Projeto foram abertos à consulta dos pesquisadores interessados.

Duas equipes de documentação trabalharam na constituição do arquivo sonoro do Projeto NURC/SP. A primeira, sob a  direção da Profa. Ada Natal Rodrigues, da Universidade de São Paulo, atuou de outubro de 1971 a abril de 1973, tendo sido inte­grada por Maria Tereza Lopes Garcia da Silva, Maria Helena Vieira Lima, Fernando Luiz Tarallo, Hiroko Chicuta, Berenice de Melo Freire e Esmeralda Vailati. A segunda, sob a direção do Prof. Dino Preti, também da Universidade de São Paulo, atuou de novembro de 1973 a 1978, tendo sido integrada por José Iran Miguel, Janice Yunes, Marlene Salles, Sônia Abou Adal, Ro­sinda de Castro Guerra, Alzira C.S. Sene, Mônica de Barros Rezende, Elza G. Gyuru, Rosaura Correa e Luís Antônio da Silva.

A partir de 1980, o Prof. Enzo Dei Carratore, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, passou a integrar a equipe do Projeto NURC/SP, com o encargo de proceder ao levantamento do léxico apurado. Dessa forma, as três universidades públicas paulistas ficaram  associadas  na condução do Projeto.

Os materiais recolhidos propiciaram a preparação de textos diversos de discussão teórica e de descrição de aspectos particulares do português culto falado em São Paulo. Damos a seguir uma relação desses textos:

  1. Discussão sobre norma culta: Castilho (1978b, 1980, 1982, 1983).
  2. Transcrição do corpus e problemas da língua oral: Castilho 1978a); Miguel (1984); Preti (1985).
  3. Estudo dos pronomes: Castilho (1978a); Milanez (1983); Pavani (em andamento); Silva e Faccio. (1981).
  4. Estudo do verbo: Baleeiro (em andamento); Barbosa (1980); Bezerra (1980), Castilho (1981, 1984); Gusmão (1978); Rangel (1978, 1984); Rebechi (1980a, 1980b); Rezende (1978); Sene, Gyuru, Guerra (1978); 5) Estudo do léxico: Carratore (1981, 1983). 
  5. Utilização dos materiais com outra metodologia: Lafuente (1982); Pinto (1982); Perini (1978); Wheeler (1981).

5. Os Coordenadores do Projeto NURC/SP, então, publicaram uma série de três volumes em que constam transcrições de textos gravados, ou seja, amostras do corpus recolhido e um volume de análises linguísticas dos materiais. Foram, portanto, publicados quatro volumes nessa primeira fase do Projeto.

Editar materiais orais não é uma tarefa simples, à vista das especificidades da língua escrita e da língua oral. Para os objetivos do Projeto, não bastará consultar as transcrições, sendo indispensável ouvir as fitas. Para pesquisadores com outros inte­resses, como psicólogos, antropólogos e educadores, as transcrições talvez bastem.

A língua oral, como se sabe, encerra um volume maior de fe­nômenos pragmáticos que a língua escrita. Bani-los numa trans­crição seria reduzir demasiadamente o fenômeno oral ao escrito. Resolvemos então conservar a maior quantidade de elementos pragmáticos das entrevistas, tais como truncamentos de palavras, ênfases, pausas, hesitações, repetições, prolongamento de vogais e consoantes. Foram evitados os sinais da língua escrita com os valores que têm aí: maiúsculas, vírgulas, ponto final, ponto-e­-vírgula, parágrafo.

O sinal de reticências indica qualquer tipo de pausa. É uma solução evidentemente discutível, mas a que se chegou por uma medida de economia no trabalho, dada a dificuldade em se cronometrar as pausas. E o cálculo aproximado (pausa longa/média/breve) tornou-se impraticável, gerando discussão e dúvida, não só pela subjetividade, mas também pela influência que a língua escrita e a sua pontuação tradicional exercem sobre o transcritor.Um primeiro levantamento dos problemas de transcrição apa­rece em Castilho (1978). Posteriormente, em seminário orientado pelo Prof. Luiz Antonio Marcuschi, e realizado na Univer­sidade Estadual de Campinas, em 1984, reajustamos as nossas convenções, após cansativas sessões de trabalhos realizadas sob a orientação do Prof. Dino Preti e com a participação dos Profs. Zilda Maria Zapparoli Castro Melo, Paulo de Tarso Gallembeck e Hudinilson Urbano: Preti (1985)."